Cerca de 40 pessoas, representantes das Comissões Locais Territoriais de pessoas atingidas pelo rompimento da barragem, organizados na Articulação das Câmaras Regionais, reuniram-se em Governador Valadares para debater sobre os descumprimentos das empresas ao Acordo de Repactuação, controle e participação social
Representantes das Comissões Locais Territoriais de pessoas atingidas pelo rompimento da barragem, organizados na Articulação das Câmaras Regionais da Bacia do Rio Doce e Litoral Norte Capixaba reuniram-se, no dia 29 de maio, com representantes do Ministério Público Federal (MPF), Dr. Eduardo Henrique Aguiar; Defensoria Pública da União (DPU), por meio do Dr. João Márcio Simões; da Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), com a presença do Dr. Bráulio Araújo; e do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), por meio do Dr. André Figueiredo, Dr. Henrique Filogonio e Mariana Melo, além dos coordenadores do Núcleo de Acompanhamento de Reparações por Desastres (Nucard), do MPMG, Dra. Shirley Machado e o Dr. Leonardo Maia, para cobrar maior efetividade no cumprimento do Acordo de Repactuação e exigir avanços na garantia da participação social no processo de reparação.
A reunião, realizada na sede da Assessoria Técnica Independente prestada pela Cáritas Diocesana de Governador Valadares, contou com a presença de cerca de 40 lideranças territoriais e representantes das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) Aedas, Cáritas Diocesana de Governador Valadares, Cáritas Diocesana de Itabira, Centro Agroecológico Tamanduá (CAT), Centro Alternativo de Formação Popular Rosa Fortini e ADAI.
Sete meses após a homologação do Acordo de Repactuação, os atingidos e atingidas denunciaram descumprimentos por parte das empresas responsáveis, Samarco Mineração S.A./Vale e BHP Billiton, e demandaram respostas sobre o monitoramento dos compromissos firmados, sobretudo no que diz respeito às indenizações individuais e à governança social do processo de reparação.
Falhas na execução das medidas de reparação e prazos insuficientes
A Articulação destacou alguns pontos críticos, como as falhas na implementação dos pagamentos previstos no Anexo 2 do acordo, que trata das indenizações individuais, incluindo a demora na quitação dos lucros cessantes para agricultores, pescadores e outras categorias de atingidos.
Previsto para encerrar no dia 4 de junho, o sistema Agro-Pesca, que prevê indenização no valor de R$ 95 mil reais a agricultores(as) familiares e pescadores(as) profissionais, também recebeu críticas. De acordo com relatos dos membros da Articulação durante o encontro, ele não tem permitido a adesão de pessoas que preenchem os critérios de elegibilidade que foram cadastradas como dependentes, além da acusar a ausência de nomes de pessoas com CAF ativo dentro do prazo estabelecido na lista enviada pela União à Samarco. Os representantes destacaram, ainda, que é fundamental que o período de solicitações também seja prorrogado, assim como no PID, para que menos pessoas atingidas sejam prejudicadas.
Outro ponto de preocupação é a continuidade do pagamento do AFE (Auxílio Financeiro Emergencial). Segundo relatos, a empresa só garantiu os repasses até março de 2026, sem considerar os meses retroativos que ainda estão pendentes. Isso tem causado insegurança jurídica e social para muitas famílias. As lideranças também estão reivindicando soluções para as comunidades tradicionais que não foram reconhecidas no Anexo 3.
Também, foi apontado pelos membros dúvidas sobre a destinação dos recursos para o Programa de Mulheres, que prevê a destinação de 1 bilhão de reais para ações que gerem autonomia financeira, desenvolvimento social e acesso a direitos fundamentais para mulheres de toda a Bacia do Rio Doce e Litoral Norte Capixaba.
Vozes dos territórios
“Eu quero que a minha família continue lá [na nossa terra], não quero mudar de lá. E a cultura? E a história? Isso vai ser como a Vale quer, vai passar igual um trator. A gente tem que dar uma guinada nessa coisa. Qual o futuro que vamos ter?” – José Pavuna (Assentamento Cachoeirinha, em Tumiritinga – Território 05).
“Eu tô cansada, mas nunca desisti da luta. Não queria estar lutando, gostaria que esse processo fosse mais leve e a cada dia ele fica mais pesado e as únicas pessoas que temos para pedir socorro são vocês.” – Maria da Penha (Território Rio Doce/Santa Cruz do Escalvado e Comunidade de Chopotó)
“Vamos tomar cuidado para a Samarco não lesar mais uma vez os atingidos.” – Felipe Godoi (Ponta do Tomazinho, Território 02 – Parque Estadual do Rio Doce e sua Zona de Amortecimento)
“A gente às vezes ataca muito, [mas é que] a gente tá triste, ver o nosso povo que passa fome. Nós apanha de canto à beirada, assim nosso povo fala. O momento agora é de retroagir ou crescer?” – Maria Madalena (Quilombo Ilha Funda, Território 03 – Vale do Aço)
“A gente tá num processo de adoecimento tão forte, nós não temos mais saúde. As violações continuam, a gente não consegue sentar com a empresa para estar conversando, eles não respondem. Na terça perdemos Seu Filomeno, um museu vivo. Ele não foi indenizado, não foi reassentado. Morreu sem ver a reparação, sem ver a restauração da igreja, precisamos ver como nossas denúncias podem chegar a um órgão maior, ao STF.” – Mônica Santos (Mariana)
“Clamamos por justiça, por saúde, por reparação. Queremos um Rio Vivo. Contamos com o Conselho de Participação. Nós estamos vendo que temos o direito de estar participando para reivindicar os nossos direitos.” Ageu José (Território 04 – Governador Valadares e Alpercata)
“Há dez anos eu peço socorro. Em nenhum momento nós pedimos um rompimento, um crime. Eu tô com uma filha de dez anos, ela tem o direito de crescer, de se tornar adulta. Todo mundo falando de saúde, mas e cadê um lugar para nos tratar? Para manter a minha filha [viva]? Eu não quero enterrar a minha filha como eu fiz com o meu tio e com a minha avó.” – Simone Silva (Quilombo Gesteira – Barra Longa)
Posicionamento das Instituições de Justiça
Durante o encontro, representantes das Instituições de Justiça (IJs) ressaltaram os principais pontos do momento atual da implementação do Acordo de Repactuação. Eles abordaram os desafios enfrentados, as oportunidades de participação e os passos que estão sendo dados. As falas mostraram o papel das IJs como mediadoras entre os atingidos, as empresas e o governo.
O procurador da República Eduardo Aguiar (MPF) destacou que a prorrogação dos prazos do PID foi conquistada. No entanto, ele também apontou que ainda existem problemas, especialmente na questão das indenizações para agricultores e pescadores. Um dos obstáculos principais é a dificuldade na emissão do Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF), já que muitos atingidos não conseguiram fazer o cadastro dentro do prazo estipulado. Por isso, estão sendo feitas tratativas para reconsiderar o prazo de emissão e possibilitar o acesso por essas pessoas.
Quanto à pesca, foram encontradas algumas inconsistências nas listas finais que foram elaboradas pelo governo e enviadas à Samarco. O MPF está em contato com o Ministério da Pesca para resolver essas questões, pois a negativa no sistema Agropesca pode impedir que os pescadores recebam uma indenização justa, o que prejudicaria muitas famílias atingidas.
A promotora Shirley Machado (MPMG/NUCARD) falou sobre as denúncias de fraudes e inconsistências nos sistemas de cadastro. Ela explicou que as Instituições de Justiça reconhecem os problemas relatados pelos atingidos e estão aguardando a contratação de uma auditoria independente, que vai avaliar também as ações da Samarco nas indenizações. Shirley destacou a importância de os atingidos continuarem enviando relatos e evidências, pois esses materiais podem ajudar bastante no trabalho da auditoria.Ela explicou, também, que no que se refere ao Programa para Mulheres, “a ideia é apresentar em forma de questionário para que levem às comissões, para que respondam sobre as diretrizes deste programa. Quando recebermos, vamos finalizar o termo de referência. Temos R$ 1bi, mas esse dinheiro será pago aos poucos. A gente espera que tenhamos um programa desenhado para que em 2026 a gente consiga iniciar o pagamento. A expectativa é que em junho a gente consiga iniciar o diálogo com vocês.” completou.
O defensor público Bráulio Santos (DPMG) destacou que em relação aos casos de fraude identificados pela perícia da Kearney, as empresas não abriram mão de possibilitar uma nova análise documental. Já para os casos que não foram identificados pela Kearny, existirá a possibilidade de reabertura de prazo de 30 dias para que as pessoas atingidas possam enviar documentação adicional e comprovar sua elegibilidade numa nova análise.
Segundo o promotor Leonardo Maia (MPMG/NUCARD),“essas questões devem ser trazidas às IJs e pelas IJs. Ocorre a necessidade de nos organizarmos para que possam levar nos reportes das IJs as questões que são de interesse de vocês. Seria importante considerarmos que a gente organize uma rotina com prazos para que as informações possam ser compiladas e organizadas para serem reportadas às IJs, e as Ijs possam reportar para à justiça”.
Os representantes das Instituições de Justiça também reforçaram que as reuniões de monitoramento realizadas junto ao Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6) têm caráter meramente informativo. Não há deliberação ou decisão nesses encontros. O objetivo é reunir informações dos entes executores, para que o TRF6 as encaminhe ao Supremo Tribunal Federal (STF), que tem a responsabilidade final sobre a supervisão do cumprimento do Acordo.
Participação Social
Durante o encontro com as Instituições de Justiça, os membros da Articulação das Câmaras Regionais levantaram questões importantes sobre a legitimidade da sua representação diante da nova estrutura de governança criada pelo Governo Federal. Além de reforçar a importância de garantir a representação dos territórios atingidos nos espaços de decisão, os representantes expressaram preocupação com algumas falhas na Portaria SG/PR nº 195/2025.
A atingida Lanla Maria, do Território 04, reforça pontos de reivindicação da Articulação das Câmaras Regionais, “a Portaria recém publicada diz que as Comissões foram extintas. Como pode isso, se diante do Encontro da Bacia, essa Articulação foi criada como representação das Comissões?. Nos sentimos usados. Que as IJs intercedam para que o edital se restrinja apenas em relação aos membros representantes da Articulação, para as 11 vagas territoriais. Pois foi ela que sofreu exposição, e que ainda hoje tem cobranças e conflitos causados em razão disso”, pontua.
Desde o rompimento da barragem de Fundão em 2015, a luta das comunidades atingidas por uma reparação justa tem sido marcada pela organização popular. As Comissões Locais de Atingidos, criadas de forma espontânea nos territórios da Bacia do Rio Doce e do Litoral Norte Capixaba, foram o ponto de partida desse movimento. Em 2018, com a assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta da Governança (TAC-Gov), essas comissões passaram a ser reconhecidas formalmente e integradas ao sistema de governança da reparação.
Somente em 2023, com o apoio das Instituições de Justiça e das Assessorias Técnicas Independentes, que se conseguiu consolidar, fortalecer e unificar essas comissões locais. Esse esforço culminou no Encontro da Bacia do Rio Doce e Litoral Norte Capixaba, realizado em agosto de 2024, quando os atingidos se reuniram pela primeira vez para estabelecer uma representação comum e legítima. A partir desse momento, passou a ser reconhecida a Articulação das Câmaras Regionais como principal instância de representação social. Composta por membros eleitos pelos seus territórios, ela é resultado de quase uma década de mobilização popular.
A partir da homologação do acordo de repactuação, assinado apenas dois meses depois do Encontro da Bacia, novas estruturas de governança e participação foram criadas, como a implementação do Conselho Federal de Participação Social e a previsão de conselhos estaduais e municipais, que ainda estão em fase de estruturação. É importante destacar que a construção dessas instâncias foram feitas sem diálogo e sem participação direta dos territórios atingidos e da Articulação das Câmaras Regionais, centralizando os mecanismos de controle social apenas no Poder Público.
Esse modelo trouxe preocupações para os membros da Articulação das Câmaras Regionais, sobre o risco de deslegitimar o processo representativo já consolidado. No que diz respeito à publicação da Portaria SG/PR nº 195/2025 que implementou o Conselho Federal de Participação Social, a Articulação encaminhou ao Governo Federal um conjunto de propostas para alterações na portaria, no edital de seleção dos representantes da sociedade civil para composição do conselho e garantia à legitimidade de representação deste coletivo.
Confira a seguir as fotos da atividade: