FGV lança livro a partir de um acervo de 10 mil narrativas no marco dos 10 anos do rompimento da barragem de Fundão

Obra reúne relatos de moradores da Bacia do Rio Doce e resgata a memória das perdas e resistências das populações atingidas

A Fundação Getúlio Vargas (FGV) lançou, no dia 26 de novembro, em São Paulo, o livro “É como perder um ente querido: histórias de rio e de mar das populações atingidas pelo desastre da Samarco”. A obra marcou os dez anos do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), e reuniu relatos que evidenciam a profundidade dos danos vividos pelas populações atingidas na Bacia do Rio Doce.

O livro foi publicado pela Hucitec Editora e elaborado a partir de um vasto acervo de aproximadamente 10 mil fragmentos narrativos coletados pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV (FGVces). O material foi produzido durante as oficinas do Projeto Rio Doce, realizadas entre 2019 e 2022, com foco na centralidade das pessoas atingidas e na construção participativa da identificação e qualificação dos danos.

A participação da FGV no processo foi prevista no Termo Aditivo ao Termo de Ajustamento Preliminar (TAP), firmado em novembro de 2017, que estabeleceu a instituição como expert do Ministério Público Federal. O Projeto Rio Doce envolveu cinco escolas da FGV, sendo elas Direito SP, Direito Rio, EAESP, EESP e EMAp, em uma abordagem interdisciplinar que resultou em diagnósticos socioeconômicos detalhados da população atingida.

Ao todo, foram realizadas 219 interações com 1.871 pessoas, distribuídas por 44 municípios ao longo da Bacia do Rio Doce. No Território 4 ocorreram oito encontros, entre oficinas, rodas de conversa e entrevistas, que reuniram 107 participantes. Já nos Territórios 01 e 02, ocorreram 27 encontros, que contaram com 173 participações de pessoas atingidas.

O prefácio do livro foi escrito de forma colaborativa e teve a contribuição das pessoas atingidas: José Pavuna Neto, do município de Tumiritinga (MG); Luciana Souza de Oliveira, do município Regência, município de Linhares (ES); Maria das Graças Cruz Siríaco, atingida do município de Resplendor (MG); Marlene Imaculada Carlos, atingida do município de Marliéria (MG); Olindina Serafim, atingida da comunidade quilombola de São Domingos, no território de Sapê do Norte em Conceição da Barra (ES); Simone de Fátima Nunes, atingida do município de São José do Goiabal (MG). 

A obra está organizada em Prefácio, Apresentação e dez capítulos que reúnem relatos das populações atingidas, cada um guiado por uma frase retirada das narrativas coletadas.

  • Capítulo 1 – Rompimento, “A água limpa na frente e a morte caminhando atrás”
  • Capítulo 2 – Risco, “Tava todo mundo com a sua vida, a gente não pensava que essa lama ia chegar arrastando tudo”
  • Capítulo 3 – Trauma, “Fiquei com tanto medo que não dormia. De lá pra cá teve outro rumo de vida”
  • Capítulo 4 – Transformação, “A gente foi nascido e criado na beira desse rio lindo e em três dias viu o rio morto. Hoje em dia a gente nem gosta de chegar perto”
  • Capítulo 5 – Ruína, “Eu continuo amigo do rio Doce, mas ele não é o mesmo amigo que colocava o pão na minha mesa, ele foi assassinado”
  • Capítulo 6 – Contaminação, “A lama não acabou ainda não, o veneno continua descendo”
  • Capítulo 7 – Adoecer, “Ficamos doentes junto com os peixes. Quantas pessoas estão doentes pelo contato com a água? Quantas estão doentes psicologicamente?”
  • Capítulo 8 – Desterritorializar, “O rio [e o mar] é nossa casa, nosso lar, nossa essência tá ali. Abandonar tudo que você ama porque não pode usufruir daquilo é terrível”
  • Capítulo 9 – Injustiça, “A gente acorda com esse problema do desastre, dorme com esse problema, sonha durante a noite e tem pesadelos”
  • Capítulo 10 – Espera, “A chegada da lama matou sonhos, matou esperanças”.

 

Na obra estão presentes relatos de pessoas atingidas dos Territórios 01 (Rio Casca e Adjacências) e 02 (Parque Estadual do Rio Doce e sua Zona Amortecimento), que pontuam a insegurança em relação à qualidade da água para consumo humano e dos alimentos produzidos nos quintais, além do esvaziamento de festejos e tradições culturais e religiosas. 

— Nossa região aqui, de Marliéria [MG], Timóteo [MG], Cava Grande [MG], tinha muitas festas que eram proporcionadas para o município. Tinha romaria ecológica do parque, vinha muita gente e acabou tudo. O desastre comove muito as pessoas de virem para cá, por causa dessa situação. Antes tinha aquela vontade de estar no meio. Muitas das nossas famílias vinham de longe, da capital. A festa do milho, não existe mais essa festa, não. Eu creio que foi a falta de produção, porque não tem mais igual antigamente, antes do rompimento.

— A gente não sabia a quantas estava a contaminação. Sem contar que nunca teve, aqui em Sem-Peixe [MG], uma testagem para saber se de fato esse contato com a lama afetou a saúde da gente. Em momento nenhum a gente falou das crianças, não foi feito nenhum estudo, nem nada... Se de alguma forma afetou a vida das crianças essa questão da barragem, que seja na dificuldade de alimentação, que seja em alguma doença...

Seguindo o caminho da lama pelo rio, os relatos da população atingida do Território 4 recuperam o período de interrupção do abastecimento de água em Governador Valadares e Alpercata.

— A lama de rejeitos invadiu toda a parte de tratamento, então, assim, não teve como tomar água da rua nem da torneira. Não tinha água nem pra consumo próprio e nem para cozinhar, e também não tinha como entregar. A água era um artigo de luxo, muitos ficaram sem tomar banho.

— A água era R$ 7,00, passou para R$ 25,00. Se você achasse galão a R$ 25,00, corre e compra, porque senão você fica sem. Não tinha água. Em uma cidade de 300 mil habitantes, que no verão dá 40°C, do dia para a noite não tem água. Foi aquele desespero! A pessoa ficava igual bicho para conseguir aquela água para tomar. Tivemos momentos tão violentos que tivemos luta com armas pela água.

— Tinha vez que nós ia pegar água no caminhão, tinha vez que nós não pegava, por causa que tinha muita gente, ficava escolhendo. Fiquei numa fila lá uma vez, estava um sol tão quente que quando eu cheguei em casa eu passei mal. A fila muito grande e o sol muito quente, aí eu falei: “vamos lá na mulher ali, na vizinha, pegar água pra poder fazer comida”.

É possível fazer o download do pdf de acesso aberto: https://drive.google.com/drive/folders/1V10_xOOGnJ5KypZev990kRxpjwTA_WY5.

Além do livro, o lançamento apresentou ao público o Banco de Narrativas, que reúne todo o material coletado durante o trabalho de campo. 

O acervo, disponível online, contém tanto trechos curtos registrados em tarjetas de papel quanto relatos longos provenientes de transcrições de diálogos. O conteúdo pode ser filtrado por palavras-chave, temas e territórios, através do link: https://projetoriodoce.fgv.br/banco-de-narrativas.

A gravação completa do evento de lançamento está disponível no YouTube:

https://www.youtube.com/watch?v=gEVpURAn8DA

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