Mulheres atingidas pela barragem de Fundão na Bacia do Rio Doce: da invisibilidade ao reconhecimento tardio

As mulheres atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão causado pela Samarco, Vale e BHP Billiton na Bacia do Rio Doce esperam construção participativa junto às Instituições de Justiça para a elaboração das propostas de reparação a partir das definições do Acordo de Repactuação 

 

Quase 10  anos desde o rompimento da barragem de Fundão, um dos maiores crimes socioambientais da história do Brasil, a luta das mulheres atingidas da Bacia do Rio Doce ganha um novo capítulo com a destinação de 1 bilhão de reais que devem ser utilizados exclusivamente à reparação e promoção de seus direitos. O recurso está previsto na Cláusula 40  do Acordo de Repactuação, assinado em 25 de outubro de 2024, que diz: 

“Fica criado o Programa para Mulheres, ao qual se destina o valor de R$ 1.000.000.000,00 (um bilhão de reais), para iniciativas a serem implementadas e geridas pelas Instituições de Justiça em benefício das mulheres da Bacia Hidrográfica do Rio Doce e do Litoral norte do Estado do Espírito Santo”

Assim, as Instituições de Justiça -  Defensorias Públicas da União, de Minas Gerais e do Espírito Santo, além dos Ministérios Públicos Federal e Estaduais - deverão administrar e gerir os recursos do programa.

A criação desse programa específico para as mulheres atingidas surge em um contexto de mobilização intensa e denúncias recorrentes sobre a falta de reconhecimento dos danos específicos vividos por elas, bem como a perpetuação de desigualdades de gênero nos programas indenizatórios. 

Desde o início do processo reparatório, os relatos de marginalização foram sistemáticos, revelando como a lógica patriarcal influenciou negativamente a maneira como as indenizações e auxílios foram concedidos a elas. O programa, portanto, representa uma resposta tardia, mas essencial para corrigir distorções e garantir que essas mulheres tenham seus direitos efetivamente assegurados. 

Há uma expectativa de que para a construção do Programa, as Instituições de Justiça considerem uma escuta ativa nos territórios, assim como a participação das mulheres atingidas para a definição de critérios e formas de utilização do recurso. 

 

A Ação Civil Pública e o reconhecimento das violações de direitos 

O reconhecimento da necessidade desse fundo específico ocorreu após uma Ação Civil Pública (ACP) em 24 de junho de 2024, movida pela Defensoria Pública da União, pelas Defensorias Estaduais de Minas Gerais e Espírito Santo, e pelos Ministérios Públicos Federal e Estaduais contra a Fundação Renova e as empresas Samarco, Vale e BHP, denunciando a violação sistemática dos direitos das mulheres atingidas. A ACP destacou que o modelo de cadastramento adotado pela Fundação Renova aumentou as desigualdades de gênero, registrando as mulheres como dependentes de seus maridos ou parentes homens, mesmo quando eram responsáveis pelo sustento da família. 

A decisão judicial resultante dessa ação condenou a Fundação Renova por práticas discriminatórias e determinou medidas emergenciais, como a atualização de cadastros, a proibição de práticas que colocassem as mulheres em situação de submissão, e a garantia de acesso direto aos programas de indenização e auxílio financeiro. O juiz da 4ª Vara Federal, Vinicius Cobucci, enfatizou que o modelo patriarcal adotado na reparação era inconstitucional e configurava violência institucional contra as mulheres atingidas.   

Em seguida, a Fundação Renova interpôs recurso, em 20 de setembro de 2024, alegando que a decisão revisou questões já decididas, o que, segundo a Fundação, viola a segurança jurídica. Nas contestações apresentadas, as empresas Samarco, Vale e BHP, juntamente com a Fundação Renova, buscaram a readequação do valor da causa e a extinção do processo. Uma decisão interlocutória proferida em 18 de setembro de 2024, suspendeu a Ação Civil Pública entre 11 de setembro de 2024 e 11 de outubro de 2024, e após a homologação do acordo de repactuação, em 17 de dezembro de  2024 o juiz da 4ª Vara Federal declarou  extinto o processo, sem resolução do mérito.

As mesmas Instituições de Justiça que ingressaram com a ACP agora são responsáveis pela gestão do programa de reparação para as mulheres. As mulheres atingidas aguardam o início do diálogo com as Instituições de Justiça e estão se preparando para debater e construir os critérios para acesso aos recursos, formas de participação no desenho do programa, a realização de audiências públicas para discutir suas necessidades e prioridades. As ATIs estão construindo a realização de seminários temáticos para início dos debates que em breve serão anunciados. 

 

Trajetória de luta contra as violações de direitos 

Desde o rompimento da barragem de Fundão, as mulheres enfrentam um processo de reparação caracterizado pela invisibilidade e pela violação de seus direitos. Segundo relatório “Rompimento do Fundão na perspectiva das mulheres atingidas” produzido pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) no ano de 2022, a maioria dos danos relatados por essas mulheres está relacionada à falta de reconhecimento nos programas indenizatórios, à precarização de sua autonomia financeira e ao agravamento de programas de saúde física e mental. 

A destruição do Rio Doce impactou diretamente atividades tradicionalmente desempenhadas pelas mulheres, como a pesca, a agricultura familiar e o trabalho doméstico remunerado. Muitas atingidas relataram que perderam completamente sua fonte de renda e não tiveram acesso às indenizações devidas, pois foram registradas nos cadastros feitos pela Samarco, Fundação Renova ou empresas contratadas, como dependentes de um responsável familiar homem. Essa situação gerou um ciclo de empobrecimento, insegurança alimentar e fragilidade emocional.

Além das perdas materiais, os impactos sobre a saúde física e mental das atingidas são alarmantes. Muitas relataram sintomas como ansiedade, depressão e problemas dermatológicos, agravados pelo uso contínuo da água contaminada do rio para consumo e higiene. O aumento da sobrecarga de trabalho doméstico também foi um fator determinante para o desgaste emocional dessas mulheres, que se viram obrigadas a assumir novas responsabilidades sem qualquer suporte institucional adequado.

 

Um futuro incerto para a reparação das mulheres atingidas 

“A minha expectativa com o Fundo das Mulheres é: quem sabe agora essas mulheres possam ser reconhecidas? Reconhecidas como companheiras, trabalhadoras da pesca, da agricultura familiar… cada uma no seu dano.”, Aparecida Valério Pavuna, agricultora familiar no Assentamento Cachoeirinha em Tumiritinga-MG. 

“Que seja pra fazer diferença na vida de cada uma de nós, mulheres atingidas, que sofremos violações, principalmente aquelas que nem cadastro fizeram. Espero que isso seja visto com justiça e da melhor forma possível. Somos guerreiras. Que seja feito com qualidade, pois tenho várias amigas que não têm cadastro. Se temos direito, que venha para todas. Falta reconhecer as mulheres, principalmente as que não foram cadastradas. O que ainda precisa ser feito é nos olharem com bons olhos, que seja rápido, pois o tempo passa e nós estamos esperando há quase 10 anos, merecemos ser vistas e contempladas.”, Conceição de Pádua, moradora atingida de Fazenda do Pena, em São Domingos do Prata-MG.

“8 de março não é um dia comum, mas sim um dia pra relembrar a luta e discriminação que todas nós mulheres sentimos ao longo de todos os tempos. Nossos direitos foram e estão sendo violados. A luta é diária. Nós, mulheres atingidas pela barragem de Fundão, principalmente aquelas que foram impactadas e até hoje não foram reparadas, são as que mais sofrem com as injustiças sociais. O governo assinou uma repactuação que logo depois foi homologada por um de seus ministros e, mais uma vez, nós mulheres ficamos indiferentes numa reparação que deveria ser justa para todos. Os cadastros que deveriam ser retomados ficaram de fora, mostrando assim a indiferença contra as mulheres. Os direitos humanos sequer foram mencionados na hora de nos representar na mesa de repactuação a nosso favor. O mais horripilante foi ser destinado este 1 bilhão às mulheres da Bacia, sendo que bilhões e bilhões foram destinados a outras instituições e nós ficamos com essa migalha, que nem sequer tocaram no assunto de como será distribuído. No meu pensar, nesse processo de reparação injusto para nós mulheres, violando os nossos direitos, o governo deveria ser mais humano e fazer diferente, ter atenção especial para a classe mais atingida e menos favorecida, porque somos nós que sofremos na pele todas estas injustiças que infelizmente sofremos dia após dia.”, Juventina Avelina, moradora atingida de Cava Grande, em Marliéria-MG. 

 

O reconhecimento da necessidade de um programa específico para mulheres representa um avanço, mas ainda existem desafios a serem superados para garantir que os recursos sejam efetivamente aplicados em políticas públicas estruturantes e acessíveis às atingidas. A reparação integral dessas mulheres passa não apenas pelo acesso a indenizações justas, mas também pela criação de condições que lhes permitam reconstruir suas vidas com autonomia, segurança e dignidade. 

A luta das mulheres atingidas da Bacia do Rio Doce não se encerra com a designação de um recurso de R$ 1 bilhão ou de programas específicos para mulheres. O monitoramento da implementação do programa, a garantia da participação ativa das atingidas na definição de suas diretrizes e a responsabilização das empresas envolvidas no rompimento da barragem continuam sendo primordiais para que as violações de direitos decorrentes de uma reparação ineficaz sejam sanadas.

 

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